domingo, 19 de dezembro de 2010

O Índio no Brasil. Etnocídio Histórico.


Miguel Baldez


Em 1500, os europeus chegaram ao Brasil, esta Pindorama então paradisíaca como a eles pareceu. Descobriram essa terra, como diz a historiografia oficial, acharam-na, como quer Marilena Chauí seguindo a leitura primeira de Pero Vaz de Caminha, ou, considerando-se que os povos seus habitantes, segundo dados antropológicos e arqueológicos comprovados, aqui já estavam há 20 mil anos, simplesmente invasores. Não há como duvidar de que o fato, na relação entre povos, significou historicamente a conquista da terra por nação estranha e povos outros de ambição e cultura diferentes.
Como aconteceu na dominação espanhola na América Latina, à conquista portuguesa seguiu-se recorrente genocídio dos povos da terra conquistada e, como registra Boaventura de Sousa Santos no ensaio Norte, Sul e Utopia (Pela Mão de Alice), continuado epistemicídio.
Nessa recém achada ou invadida Pindorama, os naturais da terra desde logo vistos como a mão de obra disponível para garantir e dar provimento aos interesses econômicos dos conquistadores, foram perseguidos, caçados e, presas de guerra, escravizados. Notar que, na historicidade da economia ocidental, já se estava na fase do mercantilismo ou capitalismo mercantil. Ultrapassada a Idade Média e o modo feudal de produção e o escravismo ressurgiu das entranhas renascidas da antiguidade como o meio próprio para dar estrutura à economia colonial.
Pois a escravização do índio, minimizada na leitura atual pela violência do escravismo negro, durou na verdade, mais de dois séculos, só se extinguindo em torno de 1750, depois de a Igreja, cúmplice dos colonizadores pela captura da alma dos povos conquistados, ter reconhecido em bula do Papa Paulo III, a alma do índio.
Na trajetória jurídica de Pindorama, o direito que se impôs e aplicou no Brasil - e não poderia ser diferente - foi o direito construído na Europa, fruto do romanismo justinianeu do séc. VI da era Cristã. Isso, ainda na fase colonial, pois Portugal já passara pela revolução de 1358, que Raimundo Faoro, no indispensável Donos do Poder, chamou revolução burguesa precoce, quando pontificou o saber e a elaboração jurídica de João da Regras.
Se com a Renascença surgiu um novo conceito de homem, abstraído da realidade e fundamento de nova visão da história, sua individualização ideológica não se consagrou com a inspiração abstrata do homem renascentista, mas com o perfil da burguesia. Enfim o homem enformado na revolução continuada da burguesia e definitivamente concluído no código napoleônico não foi o homem da Renascença, mas o homem burguês.
E o trabalhador como força concreta, escravo na antiguidade, servo durante o feudalismo e operário no modo de produção capitalista, em que regime institucional seria ele metido? Com a ascensão do capitalismo, embora subjetivado para dar pernas à mercadoria (Karl Marx, O Capital I vol.), o que predominou como norma sobre ele foi a tutela da fábrica, tipificado não como homem em si, mas, na composição orgânica do Capital, como  capital variável, passando ele, em face do poder econômico da burguesia, sem grande esforço, da sociedade do trato à sociedade do contrato.
A economia do Brasil, submissa à ideologia religiosa e à ideologia jurídica, passou sucessivamente pelo trato, com o escravismo, e subseqüentemente pelo regime do contrato, expresso em variadas formas de escambo até à consolidação do assalariamento. Mantinha-se assim, com a imposição do salário (conseqüência da apropriação da força de trabalho do próprio trabalhador), a divisão de classes na sociedade e, no campo restrito do direito, a proteção dos bens da classe dominante e o controle juridicista sobre a classe trabalhadora, garantia de um de um lado de acumulação do poder e, de outro, da submissão econômica da classe trabalhadora.
É justamente essa divisão da sociedade em classes antagônicas, origem de preconceitos societais, racistas e economicistas, que vai explicar o tratamento dado no Brasil pelo direito oficial às classes e camadas sociais subalternizadas: o trabalhador, o negro e o índio.
Quanto à população indígena, o índio e a terra podem ser vistos, numa primeira abstração e reflexão, como unidade indissolúvel. A terra compõe, com os demais elementos da natureza, a essencialidade do índio, realidade que Humberto Mauro captou e mostrou poeticamente no filme Descobrimento do Brasil na dolorosa cena do corte das árvores para a construção da primeira cruz fincada no Brasil. Os índios choravam, sentindo no próprio corpo o corte das árvores, enquanto os portugueses viam na emoção dos índios o reconhecimento da cristandade diante da imposição da cruz... Tinham os olhos velados pelo véu ideológico da cultura excludente do branco europeu. A observação crítica de Humberto Mauro, bem ajustada em linguagem cinematográfica ao processo histórico, ajuda a compreender a exclusão e o trato discriminador dados ao índio no Brasil.
Pois o sistema de produção colonial exigiu do invasor o apossamento da terra e a instituição do escravismo para garantir, com o monopólio do trabalho, o monopólio da distribuição nos bens apropriados em Pindorama aos destinatários europeus.
Com o surgimento do mercado de escravos negros, renda capitalizada, na época importante investimento (Martins, O Cativeiro da Terra), o escravismo do índio acabou por ser mitigado em cercamentos, utilizados eles em trabalhos eventuais com precária remuneração. Foi assim numa continuada relação de servidão que as nações indígenas, submetidas à violência eventual de genocídios pontuais e ao etnocídio de suas tradições e cultura (Pierre Clastres, Arqueologia da Violência), sobreviveram na tragédia de Pindorama, agora Brasil.
Veio a construção político-jurídica do estado brasileiro, e o índio ficou subsumido no subsolo do direito positivado. Entenda-se o caráter limitativo do direito burguês relativamente ao outro no processo de juridicisação do fato formativo da norma jurídica. No concreto, ao juridificar um conflito para dispersar a contradição sócio-econômica nele reduzida incorpora na própria norma a violência do conflito, dispersando, pela dispersão do conflito, a contradição nela individualizada.
Assim, numa sociedade classista, típica do modo de produção capitalista, a dispersão da contradição através de atos impositivos e sanções vai repercutir sobre as classes excluídas do poder como norma ou regramento de variada forma de submissão, alcançando-as em todas as manifestações de vida, tratando-se de escravos, servos ou operários. Em suma, naquilo que de humano lhes sobrou.
Quanto aos povos indígenas, em sua longevidade histórica e diante da invasão européia dita civilizatória, foram desqualificados no trato institucional com a preconceituosa classificação de povos primitivos, quando na verdade eram povos de outra cultura, outra conformação social, outra ética enfim (Pierre Clastres, A Sociedade Contra o Estado).
Pois foi esta antecedência na terra conquistada que a Constituição Federal de 1988, em vigor, reconheceu em seus artigos 231 e 232, tanto quanto outras constituições de outros estados da América Latina, como, por exemplo, as Constituições do Paraguai e da Bolívia, fruto cada uma delas da inesgotável tensão entre os povos da terra e os conquistadores.
Na dialética da relação entre as duas culturas, três pontos fundamentais devem ser observados no tratamento jurídico do regime constitucional de tais estados: (a) o pressuposto da antecedência histórica, (b) a relação integrativa entre índio e terra (a terra está na essencialidade do índio assim como o ar está na essencialidade de qualquer ser vivo), e (c) no reconhecimento pelo Estado desses estados ditos primitivos.
A constitucionalização dos povos indígenas como originários da terra foi uma vitória demorada e dolorosa contra o etnocídio praticado no tempo contra o índio nesta América Latina e, no que diretamente interessa aos artigos redentores, nestes brasis. Ainda Pierre Clastres alude à constância do etnocídio praticado no correr da história contra as comunidades indígenas, distinguindo-o com precisão do conceito de genocídio:

“Se o termo genocídio remete à idéia de raça e a vontade de extermínio de uma minoria racial, o termo etnocídio aponta não para a destruição física dos homens (caso em que se permaneceria na situação genocida), mas para a destruição de sua cultura. O etnocídio, portanto, é a destruição sistemática dos modos de vida e pensamento de povos diferentes daqueles que empreendem essa destruição. Em suma, o genocídio assassina os povos em seu corpo, o etnocídio os mata em seu espírito.” (Pierre Clastres, Arqueologia da Violência, pgs. 83)

Enquanto o genocídio praticado contra o índio no Brasil significou a pronta e imediata negação da vida - ainda hoje comum nas ações do Estado contra comunidades discriminadas -, criminalizadas para legitimar a ação exterminadora, o etnocídio, naturalizado pelo passar indiferente do tempo, convive sem pressa com o outro, no caso o índio, até submetê-lo ao poder dominante, para subjugá-lo cultural, política e juridicamente.
 Leve-se em conta, porém, que o reconhecimento da antecedência histórica, consagrado na Constituição Federal, vale apenas como etapa, importante sem dúvida, no caminho histórico da libertação dos povos índigenas, uma vez que a consignação constitucional, embora de peso como garantia de respeito e obediência, está sujeita, no concreto, a freqüentes e predatórias intervenções do branco senhor, matriz dos interesses federativos do Estado, quase sempre imbricados nos interesses econômicos da classe dominante. É na cumplicidade da retórica etnocida de uma cultura escravagista com o estado brasileiro que se mantém, sobre a posse da terra, a tensão classista entre os valores do branco e a resistência de vida do índio.
O caráter ideológico do etnocídio só encontrará desejada e efetiva superação no momento em que for reconhecida de fato, nas origens do Brasil, a antecedência histórica dos povos indígenas, e o princípio do respeito a dignidade do homem, anterior ao traçado constitucional, tenha a sua compreensão ampliada pela consistência ética dos valores indígenas: o homem está na terra e a terra na essencialidade do homem, sendo inseparáveis como expressão de vida, individual e societal, e a violência invasiva contra o índio e a natureza abolida de vez. Mas violentar a terra, prática do invasor desde a conquista dita descobrimento ou achamento do Brasil, é uma constante no curso civilizatório ocidental. Não há, entretanto como conciliar a terra, valor na vida do homem, com a tipificação dela, terra, na estrutura orgânica do capital.  
O terceiro ponto está na transformação de Pindorama em Brasil, e nessa transição o tratamento dado à terra obedeceu aos marcos jurídicos de posse e propriedade. Esses institutos, construídos principalmente por Savigny e Ihering, no séc. XIX deram a tônica da transformação de Pindorama em Brasil. Pois foi através da elaboração conceitual, em princípio indiferenciada da posse e da propriedade, que se fez a apropriação constitutiva dos poderes fáticos e jurídicos, sobre a terra que deixou de ser no homem e passou a ser do homem, daquele que em suma dela se apoderou e nela instituiu, como classe, seu poder econômico. Ao índio o que sobrou foi a resistência, ou a alternativa da emancipação, essa um eventual fruto da ideologia etnocida do estado classista, sendo dispensável apontar o estágio social a ele reservado se for apropriado pela civilização do branco...
Em conclusão, uma ligeira analise do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal no caso Raposa Serra do Sol, cujo objeto foi a demanda em torno à demarcação da terra do índio no estado de Roraima, em ação proposta por senador da República na via abstrata do judicialismo, sem dúvida uma tentativa de etnocídio, sempre naturalizado pela cultura jurídica do Estado.
No Supremo Tribunal Federal, entretanto, a tentativa de etnocídio esbarrou no caráter do Ministro Aires Britto, cujo voto, democrático e universal, fundou-se na solidariedade e no princípio da dignidade humana, cláusula pétrea absoluta do traçado constitucional, registrando ele, no dito voto, com sabor de denúncia e protesto, “O processo de discriminação das populações indígenas e a espremedura topográfica por elas sentidas,” para, afinal, intuir, inspirado na luta do índio e pelo índio, o indicativo de uma outra sociedade, “de finalidade – diz Aires Britto – nitidamente fraternal ou solidária, própria de uma quadra constitucional que se volta para a efetivação de um novo tipo de igualdade, qual seja, a igualdade civil-moral de minorias que tem experimentado historicamente e por preconceito desvantagem corporativa com outros segmentos sociais, e que, portanto, trata-se de uma era constitucional compensatória dessas desvantagens a se viabilizar por mecanismos de ações afirmativas”. Afastou, ademais, o olegado antagonismo entre a questão indígena e o desenvolvimento (Relator Ministro Aires Britto, 27.08.2008. Pet. 3388).
Esse voto seria subscrito não só pelos povos indígenas, mas também por todas as minorias viventes no Brasil, a grande maioria da população alcançada pelo conceito constitucional de pobreza, sendo de notar que o artigo 3° da Constituição Federal, ao incluir a erradicação da pobreza como princípio objetivo, ressemantizou politicamente o conteúdo da expressão, influência provável do Concílio Vaticano II e do surgimento da Teologia da Libertação na América Latina, dando-lhe evidente dimensão política.
Ao encerrar esse artigo, quero homenagear os povos indígenas passando a fala no texto a Ailton Krenak, importante sociólogo e liderança de sua gente, que, em Seminário realizado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, depois de criticar, com justeza absoluta, o caráter individualista da Declaração Universal dos Direitos Humanos, consagrou sua critica com frase-lema definitiva: “A inspiração de que todo homem é um indivíduo precisa ser iluminada pela de que todo homem é um coletivo, que não anda nem busca coisas sozinho”. (fala, CADERNOS DE CIDADANIA, Rio de Janeiro, 2006, pgs. 150).

Referências bibliográficas:
CLASTRES, Pierre. Arqueologia da Violencia. Ed. Cosac Enaify. 
CLASTRESM Pierre. Sociedade Contra o Estado. Ed. Cosac Enaify.
MARX, Karl. O Capital, vol. 1. Civilização Brasileira. 1° ed.
FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder. Editora Globo. 6° ed.
MARTINS, José de Sousa. O Cativeiro da Terra.  Hucitec, 1° ed.