quarta-feira, 27 de abril de 2011

Salve o Núcleo de Terras e Habitação da Defensoria Pública (mas salve mesmo...)


Salve o Núcleo de Terras e Habitação da Defensoria Pública (mas salve mesmo...)

Miguel Baldez
           
Dezenove de abril deste 2011, importante dia de saudação e homenagem à vida desse povo pobre do Rio de Janeiro, aquela pobreza institucionalizada pela Constituição Federal no princípio objetivo (artigo 3º) nela incluído em cumprimento ao princípio fundamental do respeito à dignidade do homem e da mulher (artigo 1º), falo da ordem constitucional de erradicação da pobreza e, como ordem, anotado no programa de governo pela presidenta Dilma Roussef, mas muito mal compreendida por seus parceiros do Rio, principalmente o Prefeito Eduardo Paes e seu braço armado, o governador Sergio Cabral com o aparato militar que a competência federativa lhe reservou.

Entendam senhores: a presidenta não quis dizer que a erradicação da pobreza se faria através de variada forma de violência, oficial ou não, como mandados judiciais, ações policiais e terrorismo municipal. Já se disse em outro escrito mas não custa repetir, até à exaustão se for preciso, que não é e nem será por meios cirúrgicos que a senhora presidenta pretende erradicar a pobreza mas sim por mecanismos de inclusão social.

Pois naquele importante dia 19 de abril deu-se na prática aquilo que Ernst Bloch (O Princípio Esperança), citado por Leandro Konder (O Manifesto Comunista 150 anos depois) chamou “consciência antecipadora” da utopia. E esta festa democrática aconteceu por iniciativa do deputado Marcelo Freixo, que, em honra do grupo de terras da Defensoria Pública, criou condições institucionais para abrir a Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro às comunidades excluídas e perseguidas da cidade, mostrando a Alerj, de fato, o que não é muito comum, como casa do povo.

A sessão solene não foi, por isso, uma solitária solenidade burocrática. Na verdade, a outorga da medalha Tiradentes ao Núcleo, foi fruto de importante mobilização popular e ao deputado Freixo, com solidária sensibilidade política, coube formalizar na Alerj a vontade daquela gente segura de si e organizada para resistir às agressões do poder.

Não foi, apenas, o Núcleo de Terras o único grupo democrático honrado com a outorga da medalha. Com ele também foram homenageados os Magistrados Fluminenses para a Democracia e os Juízes Democratas de São Paulo, que juntamente com os Juízes do Rio Grande do Sul, vêm iluminando com as luzes da democracia e vigorosa ação libertária e envelhecido direito brasileiro.

A nota triste da noite foi a incompreensível intervenção da Defensoria Geral no ato, pois sua representante, ao invés de ressaltar a importância de seus companheiros do Núcleo, acabou invisibilizando-os em generalização naquele momento certamente inoportuna. Pareceu que o trabalho dos defensores do Núcleo, afinal, não é tão importante assim. E é deveras muito importante, eu diria imprescindível, pois chega a beirar o heroísmo a luta contra o reacionarismo racista (70% dos 10% mais pobres da cidade são negros) de um sistema formado pelos principais comandos jurídicos e policiais do Rio de Janeiro, incluindo Município e Estado, e, a distância ou com apoio financeiro ou pela omissão diante da violência, a União Federal, e, mais à distância, mas não tão distante assim, com seus bolsos recheados e ávidos olhares voluptuosos, a especulação imobiliária, grande beneficiária de UPPs e das remoções, essas uma aberrante ilegalidade. Deu pena a vaia com que foi recebida a nomeação de um novo coordenador para o núcleo de terras, pena do jovem supostamente agraciado, cujo embaraço ficou muito claro, e se isto lhe servir de consolo veja que a vaia, tecnicamente, não foi para ele e sim para a natureza do ato anunciado, evidente intervenção que o deixou na incômoda e desagradável condição de interventor, prática inaceitável de fascismo societal, como bem diz e registra em vários estudos Boaventura de Sousa Santos.

A intervenção é um sinal. Mostra o risco da perda ou, no mínimo, do enfraquecimento do Núcleo de Terras, com sua necessária composição atual, cujos componentes, espera-se, que o senhor Defensor Geral mantenha, até pela significação histórica desse grupo, síntese perfeita da dialética democrática entre a investidura oficial e a práxis consagrada pela unânime aprovação popular.

PS: depois de redigido o texto, chegou-me a notícia de que os componentes do Núcleo de Terras e Habitação da Defensoria Pública, não resistindo às pressões internas, exoneraram-se de suas respectivas funções, e, provavelmente como punição, foram lotados, cada um de per si, em municípios diferentes e distantes uns dos outros. Cabe, agora, à Assembléia Legislativa e aos movimentos que participaram do grande ato do dia 19 de abril exigirem do Defensor Geral a recomposição do Núcleo com o retorno de seus integrantes, pois não se pode admitir que a Assembléia Legislativa e os movimentos populares sejam punidos por participarem de ato democrático promovido na própria assembléia por iniciativa e a convite de um deputado. É a consumação da prática fascista ensaiada e anunciada com a intervenção.

Anotações Sobre Direito Insurgente




















terça-feira, 26 de abril de 2011

Fala do Professor Miguel Lanzellotti Baldez na Formatura da Turma de Direito 2010.2, da Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas IBMEC, no dia 07 de abril na Casa de Espanha, no Rio de Janeiro.


                “Ilustríssima amiga Professora Coordenadora Maria Guadalupe Piragibe da Fonseca, ilustríssimo Senhor Diretor Luiz Alberto Nascimento Campos Filho, caras Professoras e caros Professores, queridas alunas e alunos, companheiros desta jornada, senhoras e senhores.

Quero iniciar esta saudação a vocês confessando minha emoção no momento em que a turma me dá a alegria de compartilhar o gosto da missão cumprida, sedutora hora de alegria e confraternização, embora repleta de dúvidas e perplexidades, hora de chegada e de partida. No fundo da alma de cada um uma pequena mas sólida convicção: valeu, companheiras e companheiros. É assim que os vejo, é como os sinto no enlace do abraço comum por tantos objetivos... Eu não diria conquistados... Mas muito bem ensaiados na seriedade desta envolvente dialética universitária: aprendizado, ensino, universidade.

Na verdade dentro de nós mesmos, olhando esta nossa sociedade, sempre duvidamos um tanto da universalidade das leis, tal como nos ensinaram nossos professores, os meus bem antigamente e os de vocês, inclusive eu, agora. Pois nós que não nos fechamos nas salas de aula nem nas perfídias engessadas nos códigos, sabemos que universais somos nós em nosso compromisso com a vida. E na vida, em suas relações e contradições.


E nem se carece de ir, na história do pensamento, além de hegel, para se entender as limitações da lei. Se me permitem vocês vou colher na Fenomenologia dos Espíritos a melhor lição: “se investigo a gênese delas (das leis), determino as condições de sua origem, supero-as, vou além delas, passo a ser o universal enquanto elas ficam sendo o condicionado, o limitado”.

Nestas reflexões de despedida, ainda contando com a boa vontade de vocês, à moda de nossos cochichos de aula, quero propor-lhes que pensemos nos fundamentos da Constituição brasileira. Poucos atentam no princípio do respeito à dignidade do homem e da mulher, uma cláusula pétrea absoluta, cujo teor se irradia sobre todo o traçado constitucional, iluminando-o com radical repercussão no campo maior dos direitos humanos.

Não será, por outro lado, demasia a leitura dialética do artigo 5º da Constituição. Ao contrário parece-me tal leitura uma necessidade da boa exegese. Se a primeira vista parece ser a garantia da igualdade perante a lei uma consagrada abstração, parecendo mesmo equivaler, fora meramente abstrata, à garantia das desigualdades concretas, sociais, econômicas, culturais e políticas, significa na verdade, em exegese mais atenta, que no campo mesmo do artigo 5º, estando prevista uma outra igualdade, essa não será mais aquela igualdade abstrata, mas uma igualdade, agora concreta e difusa na sociedade, nas relações sócio-econômicas.

É neste ponto que pretendo afirmar a essência da minha fala. A imposição democratizante da Constituição Federal nos toca a todos, representantes privilegiados de uma sociedade cada vez mais presentativa, principalmente nos movimentos populares e sociais – e é bom que não se perca o ritmo do novo andamento-, homens e mulheres ungidos pela ideologia jurídica, ligando-nos, vinculando-nos aos direitos fundamentais não como retorno ao superado jusnaturalismo, mas dispersos nas condicionantes dialéticas da vida.

Aqui, em meu juízo, o grande desafio desta universidade, dispensando-me eu de divisões burocrática. Nasceu ela, como faculdade IBMEC, da contradição entre importante investimento de capital e da histórica convicção democrática de Evandro Lins e Silva, e logrou conforma-se na síntese didática adequada graças à justa postura da Professora Maria Guadalupe Piragibe da Fonseca e do professor Antonio Marco Duarte Junior, Coordenadora do curso de direito e ex-diretor respectivamente, além, claro, da qualidade de seu corpo docente. Uma Faculdade do seu tempo, cuja estrutura epistemológica democrática certamente será mantida pela nova e atual direção, a cargo do professor Luiz Alberto Nascimento Campos Filho. Com seu núcleos de estudos voltados para além dos muros fechados pelo conceito iluminista de universidade, a faculdade ibmec tem cumprido integralmente a ordenação constitucional do ensino superior: graduação, pesquisa e extensão, atendendo assim da melhor maneira ao necessário equilíbrio entre regulação e emancipação, convertidos, segundo Boaventura de Souza Santos (pela mão de Alice), nos pilares da modernidade.

A nós repurgna os equivocados projetos de massificação do ensino que trazem em si, no seu bojo, desprezo pela cultura jurídica, transformando os professores em robôs de repetição de conceitos esclerosados e os alunos, razão de ser da universidade, em clientela de uma mercadoria que já surge com o prazo de validade vencido.

Vocês, companheiras e companheiros, são dos melhores acontecimentos da minha vida acadêmica, de mais de 40 anos. Um velho professor como eu, que muitos consideram exigente além da conta, ter o seu nome perpetuado no próprio nome da turma é, para mim, das maiores honrarias que a vida me reservou.

E eu diria, se fora esta uma imaginária medalha, com teor duplicado de ouro. Isso por uma singela razão. O paraninfo da turma, o querido companheiro professor Rafael da Mota, se me permite ele dizer publicamente, foi meu aluno, meu orientando em sua monografia de conclusão de curso, e tive também a honra de ter sido patrono de sua turma.

Mas não poderia eu encerrar esta minha fala sem homenagear a Evandro Lins e Silva que tive a felicidade de conhecer em vida, em vida com ele conviver e, em vida, homenageá-lo.

Evandro Lins e Silva cujo busto está perpetuado na praça do IBMEC faria 100 anos no início de 2012, e o mundo jurídico prestará ao grande jurista e democrata, em seu centenário, o preito maior da nossa admiração, e tenho eu a certeza de que o seu exemplo de cidadão e democrata está consagrado na significação histórica desta turma.

Eu não direi adeus mas um até breve na certeza de que continuaremos a nos encontrar vida afora. Sejam felizes companheiras e companheiros.”

domingo, 24 de abril de 2011

Conselho Popular. Miguel Baldez.

                                                                                
                                                                                                                         Email: mlbaldez@uol.com.br
                                                                                                                          



              O Conselho popular tem sua racionalidade e objetivos inspirados na transcendência dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da cidadania e no exercício direto da democracia, todos concebidos como princípios fundamentais no art. 1º da Constituição Federal. Inspira-se, enfim, visando a garantilo às comunidades despossuídas e historicamente excluídas das riquezas sociais, no direito à moradia, previsto como necessidade ética no art. 6º, também da Constituição Federal. Quer assegurar, ao lado da tradicional e hoje em crise representação até para renová-la permanentemente, a presentatividade do povo, e resgatar a natureza libertária da posse para compreendê-la além dos limites formais e escravistas do jurisdicismo.


              O movimento pela reforma urbana no Rio de Janeiro, embora algumas referências mais remotas, vai ganhar registros recentes e cores fortes na segunda metade do século passado, quando o capital investido na cidade se torna mais agressivo e especulativo e intensa a migração conseqüente das crises econômicas e do estágio subdesenvolvido da economia brasileira.


              Com o inevitável adensamento da cidade, esse povo expulso do campo, repetindo antigo exemplo histórico, foi alojando-se nos espaços sobrantes que a apropriação e mercadorização da terra lhes deixara. Aqueles que contavam com algum recurso aventuravam-se na compra de lotes, em áreas periféricas da cidade. A grande maioria, porém, sem qualquer meio de sobrevivência, acuada pela ferocidade do poder econômico de um lado, e do outro pelo desinteresse e abandono do poder político, acomodava-se como podia ou em favelas já construídas ou em novas comunidades enfaveladas. Era preciso viver, e para viver, equilibrar-se à beira do abismo social, atendendo, por baixo é verdade e contra o permanente assédio da classe dominante e seus serviçais, às duas necessidades fundamentais da mulher e do homem: alimentar-se e morar.


              Na vida não tinham, como, aliás, aconteceu com o povo brasileiro no curso histórico deste eterno projeto de pátria amada gentil, voz nem voto, descendentes que são daquele proletariado que, encorpando o terceiro estado moderno na figuração burguesa, ficou nele encapsulado em normas jurídicas de tutela, controle e repressão. Esse o estado – da formatação política burguesa e composto sobre o direito de propriedade privada, o contratualismo e a subjetivação jurídica individual – que veio repercutir e prevalecer na construção do Estado brasileiro.


              Pois neste Estado a classe trabalhadora, universalizada no Ocidente, ou vista nos limites geográficos e sociais do Brasil, só teve fala e presença nos momentos em que, revolucionária, impôs sua vontade. Nesta mal lembrada Pindorama, de rios e florestas “uma terra em que se plantando tudo dá”, eu diria se o povo plantasse, são referências gloriosas a Federação de Palmares, um estado negro libertário construído na terra branca da colônia portuguesa; a Cabanagem, luta dos miseráveis do Pará contra o poder colonial; a epopéia de Canudos, duro enfrentamento contra o latifúndio; o Contestado luta cruenta pela posse da terra tomada do povo para financiar a construção da ferrovia São Paulo – Porto Alegre. Essas duas últimas, Canudos e Contestado, desqualificadas pela história oficial como ações místicas, mas repostas em seu conteúdo estratégico das lutas contra o latifúndio e pela posse da terra por Rui Facó em Cangaceiros e Fanáticos (Editora Bertrand S.A.). E mais perto no tempo Trombas e Formoso. Todas elas, lutas envolvendo a terra, ou diretamente pela conquista da terra. No campo e na cidade contra o capital, na área rural por vários movimentos estratégicos, com destaque para o bem organizado e politizado MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra. Na área urbana, a luta, que carece de melhor organização, como no Rio de Janeiro, dá-se permanentemente contra a insaciável especulação imobiliária, paroxístico efeito do capital sobre a terra, apropriada e transformada em rentável mercadoria.


              À massa trabalhadora, estocada em favelas e loteamentos abandonados, como se fossem prateleiras de mão de obra barata, antes exército (de baixo custo) de reserva do capital, depois e agora, com o desemprego estrutural, lixo incômodo e, por isso, de variada forma descartável... descartável com urgência, pois o capital, que fez da tecnologia, além das guerras de extermínio, seu principal instrumento de sobrevivência, tem pressa, muita pressa... que um dia – quem sabe? – lembrando o “Seu Oscar” do Oduvaldo Vianna Filho e do Ferreira Gullar, a mais valia pode acabar.


              Sufocado e escravizado em subjetivações e relações jurídicas, esta gente, a classe trabalhadora, em bom número excluída da produção desta dita mais valia, não mais logrando sequer a condição de capital variável, sem acesso à posse dos valores de uso, não dispõe minimamente dos meios indispensáveis para satisfazer as necessidades de alimentar-se e, principalmente, morar, e aqueles que conseguem trabalho, independentemente dos itens do IBGE e da boa vontade de bolsas e de um que outro bolso mais generoso, continuam submissos à juridicidade imposta ao conceito ético da posse, consolidada pelo direito por Rudolf Von Ihering.


               Bom lembrar que o conceito de posse, fundamento da vida, seqüestrado da ética pelo juridiscismo do século XIX, não sofre no Brasil modificação substancial alguma durante o curso do século XX, mantendo no artigo 1196 do Código Civil de 2002/03 a mesma redação do artigo 485 do Código Civil de 1916/17, uma tentativa de Clóvis Bevilacqua de submeter a posse aos efeitos da propriedade privada, tentativa, segundo Pontes de Miranda, frustrada, pois, diz bem Pontes (volume X do Tratado de Direito Privado), quem tem o exercício de fato dos poderes inerentes à propriedade, como dispõem os dois Códigos ( 1916 e 2002), está no mundo fático e não no universo jurídico, e as grandes contradições sociais que explodiram no curso do século XX e avançam neste início do século XXI certamente dão razão a Pontes de Miranda.


              Tanto no campo como na cidade embora a cerca jurídica construída em torno da terra para proteger, no campo, antes o latifúndio e hoje a agro-exportação, que agrava o risco transgenizado da soberania alimentar do brasileiro, e nas cidades, como no Rio de Janeiro, a especulação imobiliária, os trabalhadores vão se organizando em movimentos populares à procura de uma nova subjetividade que os identifique na práxis da ação coletiva contra o encapsulamento jurídico da posse imposto, no interesse do capital, pelo estado moderno.


               Como no século XIX, quando o proletariado, encarcerado pela burguesia no terceiro estado, lutou seguidas vezes para romper o juridicismo e presentar-se em si mesmo no processo histórico, aqui, hoje, a exemplo de grandes lutas passadas, os excluídos estão a tecer por dentro do estado burguês formas diferenciadas e atuantes de um novo estado em que prepondere uma bem elaborada proposta de democracia horizontal. No campo, com as práticas do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra – MST, depois do V Congresso melhor enformado politicamente para os enfrentamentos institucionais; na cidade, com a multiplicação de sindicatos e associações e federações de moradores, além de entidades não governamentais, as chamadas do terceiro setor, umas poucas de relevo social, ainda não se logrou ultrapassar a fórmula burguesa da representação.


              Mas nas suas lutas de libertação, poucos cuidados têm sido dedicados à luta pela fala, certamente das mais urgentes, pois ao povo no Brasil, com exemplar persistência e de modo absoluto, sempre se negou a fala. Francisco de Oliveira (Os Sentidos da Democracia: práticas do dissenso e hegemonia global, de 1999) considera os anos 60 que vão de 1930 a 1990, e observa que desses 60 anos, trinta e cinco foram de ditadura, primeiro a ditadura de Vargas na década de 30, depois a ditadura militar, que todos nós sentimos mais diretamente na carne. Aqui, avançando um tanto sobre a tese de Francisco Oliveira, vê-se que esses foram os momentos de ditadura explícita (Miguel Baldez, fala, Cadernos da Cidadania, UERJ, pags.34). Uma leitura mais cuidadosa, entretanto, mostra que a democracia permitida, formalmente recuperada em 1988 desde a nova Constituição com as fugas libertárias que efetivamente trouxe, e também, como entre Vargas e os militares, significa uma forma autoritária dissimulada neste regime representativo.


              Pois do que se trata, ou aquilo que se pretende, é pensar o povo sujeito e submisso a representações, o povo que, não sendo, quer vir a ser o quarto estado, como em fugas no passado chegou a se esboçar em átimos de tempo em Palmares, em Canudos, no Contestado e em outros instantes residuais de respiração democrática.


               Mas fugas outras só serão possíveis e continuadas nos espaços abertos pela ação dos movimentos populares ainda insubmissos ao controle da subjetivação individualizante do regramento jurídico, como são hoje os sindicatos, vitimizados e controlados pela faticidade jurídica do direito burguês, o direito do Estado.


               Se um novo estado e um novo direito, emancipatório, podem ser construídos, o espaço e o tempo de sua construção são aqueles engendrados no embate das lutas populares, e não os tradicionais espaços de produção institucional. Não será nas Universidades ou nos Tribunais, comprometidos com a ideologia jurídica da burguesia que há de surgir e concretizar-se - quem sabe, um dia - um novo projeto de sociedade, que substitua ou, na pior das hipóteses, conviva com esta atual, tornando-a igualitária não apenas no campo abstrato da lei mas também nas instâncias econômicas e social, solidária enfim.


              Algumas brechas foram abertas com a Constituição de 1988, como a admissão de juízes leigos, a democracia direta, o plebiscito e, o referendo e principalmente, o princípio vinculante do respeito à dignidade da pessoa humana, cláusula pétrea absoluta que perpassa todo o traçado constitucional. Embora o artigo 98 da Constituição Federal tenha admitido a inclusão de juízes leigos na matéria dos Juizados Especiais, provocando assim a quebra do monopólio da Justiça pela magistratura, o Estado Legislador, na regulamentação da regra, resgatou a ideologia jurídica, definindo como juiz leigo o advogado com mais de cinco anos de formado, sem protesto da OAB, ressalte-se.


               Pareceu claro, porém em teor hermenêutico, que a ratio legis inspirada em jurisdições alternativas (Boaventura de Souza Santos, O Discurso e o poder, Sérgio Fabris) abriu dialeticamente o processo a outro corte social. Perdeu-se no concreto uma rara oportunidade para democratizar o processo, valendo lembrar o grande processualista e democrata italiano Piero Calamandrei (Opere Giuridiche, Morano, I, pags. 672), que, citando Harold Laski, admite que, numa sociedade de classes, a justiça não pode deixar de ser uma justiça de classe, não só porque os juízes juristas recebem uma educação universitária que os filhos de classe pobre não podem ter, mas porque, se a lei é expressão dos interesses da classe dominante, é inevitável que o juiz, como fiel interprete da lei, acabe sendo, muita vez sem dar-se conta, um instrumento de domínio social da classe que está no poder (Calamandrei, idem, pags. 672, tradução livre). Lúcido o grande Calamandrei.


               Outro ponto iluminado da Constituição está no compromisso com a democracia direta, que ampliou o campo democrático de participação política ao incluir, ao lado do já esgotado sistema representativo, novas formas de ação do povo, essas, por serem diretas, presentativas. Presentação ao invés de (re) presentação, ou simultaneamente com as formas tradicionais , como dispõe a Constituição Federal em seu artigo 1º parágrafo único.


              A Constituição, enfim, assume ainda em seu artigo 1º, no princípio da dignidade da pessoa humana, imbricado no princípio da cidadania, o fundamento interno de sua externidade conceitual, a permanente presença renovadora do poder constituinte, pois não se duvida de que a dignidade da mulher e do homem está na raiz do povo em si, além, portanto, dos limites formais da constitucionalidade.


              Pois foi naquela raiz e inspirados nas aberturas ou fugas do espaço formal da Constituição que alguns setores atuantes da gente do Rio de Janeiro foram buscar inspiração para criar e construir – esta uma experiência concreta - um novo Conselho que significasse e assegurasse a fala do povo, permanentemente atento e vincado em suas necessidades de vida, centradas na posse da terra urbana e na moradia com todos os seus efeitos. Notar que “a cidade do trabalhador ou, quanto ao que dela sobra para o apossamento pelo trabalhador, revela-se, em face da preponderância dos interesses da capital, como amplas prateleiras de estocagem de força de trabalho (Ver Francisco de Oliveira) em favelas, cortiços, casebres etc. nas periferias dos grandes centros “(Miguel Baldez, A Constituição e a reforma Urbana, Centro de Defesa dos Direitos Humanos, Petrópolis, 1989). No Brasil nunca se fez reforma urbana.


              Com a formação do Conselho Popular hoje em fase de implantação, tendo como objeto a luta pela moradia, dá-se fala ao trabalhador, fala e poder de decisão sobre os fundamentos da vida ou das sobras de vida que a produção capitalista da cidade lhe reservou para existir e sobreviver, na verdade uma não - cidade que só pode ser negada se ocorrer autêntica reforma urbana que implique tanto nas lutas, conquistas e transformação da realidade, quanto no acesso à terra e à moradia em si.


              Frustraram-se os mecanismos institucionais de participação popular no planejamento das cidades, e os grandes destituídos da história, embora ainda lá na beira do abismo, não podem permitir que a sua concepção e concreção fiquem submissas ao tecnicismo ideológico de especialistas comprometidos com a apropriação capitalista da cidade. Ao organizarem-se no Conselho Popular, os movimentos urbanos podem dar conseqüência à luta ética pela posse da terra e conquista da moradia para incorporar - nas fronteiras da urbanização - a cidade em que habita a maioria espoliada da população urbana. No Rio de Janeiro foi criado o Conselho Popular com o objetivo de abrir espaço para repensar no urbano a relação posse e propriedade, discutir e propor medidas que assegurem ao povo marginalizado pelo estado capitalista os fundamentos da vida com o resgate do conceito de posse.


              Diz um importante autor espanhol, Hernandez Gil: a posse é a garantia das mais fundamentais necessidades do homem e da mulher, a necessidade de alimentar-se a necessidade de morar. Não há forma de pensar a necessidade alimentícia e de morar sem a pressuposição da posse. Mas a apropriação do conceito de posse pelo direito, fez dele, pela normatização, um efeito do direito de propriedade, isso sem dar-se conta, ou dando-se conta e não levando a sério, de que o sentindo da vida está nos fatos e no entrechoque das contradições sociais e econômicas e não na lei ou norma em si, e que vezes há em que a práxis engendrada no processo histórico reage à norma e revolta-se contra ela, libertandose e produzindo novos direitos que, inevitavelmente, terão conteúdo de posse.


              Quando se tem a posse submissa à propriedade - este um propósito vindo do séc. XIX, consolidado no Código Civil de 1916/17 (séc. XX) e preservado no atual Código Civil de 2002 (séc. XXI) – somente uma ação coletiva capaz de criar, no concreto, nova subjetividade poderá produzir em si como classe subalternizada uma relação direta que envolva dialeticamente o homem, a mulher e a vida, e seja capaz de romper, na ação coletiva, a normatividade jurídica imposta pela classe dominante através da subjetivação individual e da força.


               De um lado, poder econômico e poder político imbricados, e de outro apenas o trabalhador destituído de todos os valores e dispondo apenas de sua força de trabalho cuja subjetivação econômica depende sempre dos interesses da classe que o subordina, de mais ou menos postos de trabalho, do peso maior ou menor do superávit primário, do fluxo do comércio internacional, da informática e da robotização sempre sob o controle do capital. Como viver nesta sociedade sem fala e sem posse dos meios de acesso à vida, pois se até a mercadoria que deixaram ao trabalhador - a força de trabalho - é de fora contida e controlada na prisão de sua limitada subjetividade? È como se dissessem: - Toma esta mercadoria é tua força de trabalho, não és mais escravo que nem gente é, agora tens subjetividade. Pois é tua essa mercadoria... só que esta subjetividade vai depender das condições objetivas que nós estabelecermos. Sem fala e sem posse fática dos usos e valores da vida, o homem não é.


               Pois o Conselho Popular é feito da necessidade de fazer da posse da terra, como se fora a origem de um mundo novo, e do resgate da fala, meios fundantes do acesso à vida, ordenando o coletivo e definindo as lutas concretas indispensáveis ao reconhecimento do poder do povo.


               São dois os pontos de libertação que convergem no Conselho Popular: (a) a presentatividade e a negação da representação, esse o meio de que se valeu a burguesia, ao construir seu estado, para calar e submeter o proletariado; e (b) a restauração da posse no campo da ética, arrancando-a da teia formal e abstrata em que a meteram, com os ferrolhos da ideologia e da força, na cadeia jurídica dos valores burgueses. Nem a fala nem a posse, na compreensão ética do Conselho Popular pode consentir em ser mera outorga ou concessão do poder econômico-político.


               Presentatividade e posse, constituindo assim o centro do Conselho Popular, fizeram desta proposta um efetivo projeto de libertação do povo do Rio humilhado no horror dos abismos sociais.


               O conceito de presentação é adequado à prática da democracia direta e significa dizer que os movimentos populares e seus integrantes presentam-se a si próprios, e cuidam eles mesmos de seus interesses, dispensando ou submetendo suas decisões, com o trato direto de suas necessidades, a qualquer tipo de intervenção ou representação.


               Quanto ao resgate ético da posse é fato indispensável para, como foi dito, garantir o atendimento das necessidades fundamentais da existência humana, tanto a necessidade alimentícia como a necessidade de morar, objeto do Conselho Popular.


               Um exemplo histórico pode ser lembrado, como caso paradigmático concreto para dar relevo aos fundamentos político e social do Conselho Popular nesta sociedade capitalista cuja perversidade intrínseca, ou metabólica (Mészáros), exclui, em todos nos níveis e espaços de existência a classe trabalhadora.


               Há algum tempo – a data não tem importância por ser prática própria do tempo capitalista – em aliança com a especulação imobiliária, as instâncias federativas de poder, a União liberando recurso, o Estado do Rio de Janeiro com seus policiais amestrados e o Município do Rio com seus funcionários e departamentos administrativos encabeçados pela Secretária de Habitação tentaram, no Anil, promover injusta remoção, com forte tom fascista como identificar as casa destinadas à ilegal apropriação, embora propriedades privadas, com marcas degradantes retomando da Alemanha o que o nazismo fazia com o povo israelita, apenas substituindo, no Rio, o J de Judeu pelo SHM da Secretária de Habitação Municipal, comportamento deplorável de características odiosas e etnocidas, meio intimidativo até hoje adotado.


               Quanto ao Conselho Popular, ainda que na época de formação recente, teve no incidente de despejo massivo marcante e fundamental atuação. Organizou e realizou, em praça pública, concorrida assembleia de moradores. Nela, depois de discutidas, com assessoria do Conselho, as hipóteses possíveis de resposta à iminente violência institucional, decidiu-se, sem divergências, pela resistência da comunidade.


                Logo a seguir, sem qualquer ordem ou respaldo judicial, aconteceu a tentativa de remoção, enfim em boa hora frustrada pela resistência do povo. Pois desse fato histórico decorreu, primeiro, a permanência dos moradores em suas residências, e, depois, a consolidação de importante conquista no campo jurídico, graças à intervenção da Defensoria Pública, representada no Conselho em assessoria institucional.


               De notar-se que os encaminhamentos jurídicos, no Conselho Popular passam sempre por ampla discussão comunitária, consagrando-se com a nova praxis político-social, ainda no campo do direito dado de histórica conformação burguesa, um novo e insurgente direito, uma nova subjetividade, coletiva, e, por isso, emancipatória.


               O que se pode dizer em conclusão é que, com a implantação do Conselho Popular do Rio de Janeiro, será necessário sua consolidação para iniciar-se uma nova fase democrática de ativação das lutas pela terra e, tratando-se de terra urbana, luta concreta pela moradia, diferenciada pelo protagonismo do povo organizado e falando por si. Uma práxis inovadora de reflexão e ação de caráter emancipátório e, em face da nova subjetividade, capaz de superar, no coletivo, as grandes exclusões históricas e os bolsões de pobreza da cidade, e criar condições para a construção de uma nova sociedade, democrática na participação direta de sua gente, tendo como razão de ser a solidariedade e como fim uma verdadeira e autêntica igualdade.



Referencias bibliográficas


  I. FACÓ, Rui, Cangaceiros e Fanáticos, Ed. Bertrand S.A.
  II. Código Civil, 1916-1917, art. 485.
  III. Código Civil, 2002-2003, art. 193.
  IV. SANTOS, Boaventura de Souza, O Discurso e Poder, Sergio Fabris.
  V. CALAMANDREI, Piero, Opere Giuridiche, I, Morano.
  VI. OLIVEIRA, Francisco de, Os Sentidos da Democracia.
  VII. BALDEZ, Miguel Lanzellotti, fala, Cadernos de Cidadania, UERJ.
  VIII. MIRANDA, Francisco Pontes de, Tratado de Direito Privado, Vol. X., Borsoi.
  IX. GIL, Antônio Hernandez, La Possession, Vol. II, Espasa Calpe.
  X. MÉSZÁROS, István, Atualidade histórica da ofensiva socialista, Boitempo.